Saturday, May 30, 2015

O MITO, Carlos Drummond de Andrade, "A Rosa do Povo", 1945



Di Cavalcanti, Pierrette, 1922

Sequer conheço Fulana,
vejo Fulana tão curto
Fulana jamais me vê,
mas como eu amo Fulana.
Amarei mesmo Fulana?
ou é ilusão de sexo?
talvez a linha do busto,
da perna, talvez o ombro.
Amo Fulana tão forte,
amo Fulana tão dor,
que todo me despedaço
e choro,menino, choro
Mas Fulana vai se rindo...
Vejam Fulana dançando
No esporte ele está sozinha
No bar, quão acompanhada.
E Fulana diz mistérios,
diz marxismo, rimmel, gás.
Fulana me bombardeia,
no entanto sequer me vê.
E sequer nos compreendemos,
É dama de alta fidúcia,
tem latifúndios, iates,
sustenta cinco mil pobres,
Menos eu... que de orgulhoso
me basto pensando nela
Pensando com unha, plasma,
fúria, gilete, desânimo.
Amor tão disparatado,
Desbaratado é que é...
Nunca a sentei no meu colo
nem vi pela fechadura.
mas eu sei quanto me custa
manter esse gelo digno,
essa indiferença gaia,
e não gritar: Vem, Fulana!
Como deixar de invadir
sua casa de mil fechos
e sua veste arrancando
mostrá-la depois ao povo
tal como é, ou deve ser:
branca, intacta, neutra, rara,
feita de pedra translúcida,
de ausência e ruivos ornatos.
Mas como será Fulana,
digamos, no seu banheiro?
Só de pensar em seu corpo,
o meu se punge...Pois sim.
Porque preciso do corpo
para mendigar Fulana,
rogar-lhe que pise em mim,
Que me maltrate... Assim não.
Mas Fulana será gente?
Estará somente em ópera?
Será figura de livros?
Será bicho? Saberei?
Não saberei? Só pegando,
pedindo: Dona, desculpe,
O seu vestido esconde algo?
tem coxas reais? cintura?
Fulana às vezes existe
demais: até me apavora.
Vou sozinho pela rua,
eis que Fulana me roça.
Olho: não tem mais Fulana.
Povo se rindo de mim.
(Na curva do seu sapato
o calcanhar rosa e puro.)
E eu insonte, pervagando
em ruas de peixe e lágrima
Aos operários: a vistes?
Não, dizem os operários.
Aos boiadeiros: A vistes?
Dizem não os boiadeiros.
Acaso a vistes, doutores?
Mas eles respondem: Não!
Pois é possível? pergunto
aos jornais: todos calados.
Não sabemos se Fulana
passou. De nada sabemos.
E são onze horas da noite,
são onze rodas de chope,
onze vezes dei a volta
de minha sede; e Fulana
talvez dance no cassino
ou, e será mais provável,
talvez beije no Leblon,
talvez se banhe na Cólquida;
talvez se pinte no espelho
do táxi; talvez aplauda
certa peça miserável
num teatro barroco e louco;
talvez cruze a perna e beba,
talvez corte figurinhas,
talvez fume de piteira,
talvez ria, talvez minta.
Esse insuportável riso
de Fulana de mil dentes
(anúncio de dentifrício)
é faca me escavacando.
Me ponho a correr na praia.
Venha o mar! Venham cações!
Que o farol me denuncie!
Que a fortaleza me ataque!
Quero morrer sufocado,
quero das mortes a hedionda,
quero voltar repelido
pela salsugem do largo,
já sem cabeça e sem perna,
à porta do apartamento,
para feder: de propósito,
somente para Fulana.
E Fulana apelará
para os frascos de perfume.
Abre-os todos: mas de todos
eu salto, e ofendo, e sujo.
E Fulana correrá
(nem se cobriu; vai chispando)
talvez se atire lá do alto.
Seu grito é: socorro! e deus.
Mas não quero nada disso.
Para que chatear Fulana?
Pancada na sua nuca
na minha é que vai doer.
E daí não sou criança.
Fulana estuda meu rosto.
Coitado: de raça branca.
Tadinho: tinha gravata.
Já morto, me quererá?
Esconjuro se é necrófila...
Fulana é vida, ama as flores,
as artérias e as debêntures.
Sei que jamais me perdoara
matar-me para servi-la.
Fulana quer homens fortes,
couraçados, invasores.
Fulana é toda dinâmica,
tem um motor na barriga.
Suas unhas são elétricas,
seus beijos refrigerados,
desinfetados, gravados
em máquina multilite.
Fulana, como é sadia!
Os enfermos somos nós.
Sou eu, o poeta precário
que fez de Fulana um mito,
nutrindo-me de Petrarca,
Ronsard, Camões e Capim;
Que a sei embebida em leite,
carne, tomate, ginástica,
e lhe colo metafísicas,
enigmas, causas primeiras.
Mas, se tentasse construir
outra Fulana que não
essa de burguês sorriso
e de tão burro esplendor?
Mudo-lhe o nome; recorto-lhe
um traje de transparência;
já perde a carência humana;
e bato-a; de tirar sangue.
E lhe dou todas as faces
de meu sonho que especula;
e abolimos a cidade
já sem peso e nitidez.
E vadeamos a ciência,
mar de hipóteses. A lua
fica sendo nosso esquema
de um território mais justo.
E colocamos os dados
de um mundo sem classes e imposto;
e nesse mundo instalamos
os nossos irmãos vingados.
E nessa fase gloriosa,
de contradições extintas,
eu e Fulana, abrasados,
queremos... que mais queremos?
E digo a Fulana: Amiga,
afinal nos compreendemos.
Já não sofro, já não brilhas,
mas somos a mesma coisa.
(Uma coisa tão diversa
da que pensava que fôssemos.)
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

Tuesday, May 26, 2015

Homenagem a Espanha: EL MAÑANA EFÍMERO, Antonio Machado

Velásquez, Triunfo de Baco


EL MAÑANA EFIMERO

La España de charanga y pandereta,
cerrado y sacristía,
devota de Frascuelo y de María,
de espíritu burlón y alma inquieta,
ha de tener su marmol y su día,
su infalible mañana y su poeta.
En vano ayer engendrará un mañana
vacío y por ventura pasajero.
Será un joven lechuzo y tarambana,
un sayón con hechuras de bolero,
a la moda de Francia realista
un poco al uso de París pagano
y al estilo de España especialista
en el vicio al alcance de la mano.
Esa España inferior que ora y bosteza,
vieja y tahúr, zaragatera y triste;
esa España inferior que ora y embiste,
cuando se digna usar la cabeza,
aún tendrá luengo parto de varones
amantes de sagradas tradiciones
y de sagradas formas y maneras;
florecerán las barbas apostólicas,
y otras calvas en otras calaveras
brillarán, venerables y católicas.
El vano ayer engendrará un mañana
vacío y ¡por ventura! pasajero,
la sombra de un lechuzo tarambana,
de un sayón con hechuras de bolero;
el vacuo ayer dará un mañana huero.
Como la náusea de un borracho ahíto
de vino malo, un rojo sol corona
de heces turbias las cumbres de granito;
hay un mañana estomagante escrito
en la tarde pragmática y dulzona.
Mas otra España nace,
la España del cincel y de la maza,
con esa eterna juventud que se hace
del pasado macizo de la raza.
Una España implacable y redentora,
España que alborea
con un hacha en la mano vengadora,
España de la rabia y de la idea

ANTONIO MACHADO

Sunday, May 24, 2015

A QUEVEDO, João Cabral de Melo Neto, "Museu de Tudo", 1975




Hoje que o engenho não tem praça,
que a poesia se quer mais que arte
e se denega a parte
do engenho em sua traça,

nos mostra teu travejamento
que é possível abolir o lance,
o que é acaso, chance,
mais: que o fazer é engenho.

JOÃO  CABRAL  DE  MELO  NETO

Thursday, May 21, 2015

MULHERES DE HENRY MOORE NOS JARDINS, Luiza Neto Jorge, "A Lume", 1989


O cheiro da chuva inquinou os jardins
mulheres de Henry Moore sorvem os ares.

E tu alvejas-me, filho, camuflado
na recôncava brandura desses seres.
"Morta! Estás morta!"  rejubilas.

Entre os mágicos projécteis à deriva,
já crisálidas, já arcas no dilúvio,
pedem paz elas num sossegado corpo
com a terra, seus regos, suas relvas.

Naves nossas de regresso ao solo?

LUIZA NETO JORGE

("Draped Reclined Figure" Henry Moore) 

Thursday, May 14, 2015

ANUNCIAÇÃO (DESENHOS DE MIGUEL ÂNGELO), Fernando Echevarria



Miguel Ângelo, Anunciação


Estampaste o espanto do aparecimento.
Desentranhando foste, brusca, a forma
da ruptura dos rins que vem, de dentro,
transtornar a cintura. Que se dobra

sob esse impacto estranho de silêncio,
cujo repente varre para a orla
a desenhada torção de sofrimento
que o susto de anjo, do outro lado informa.

Mas, entre os dois, sem que o desenhes, deixas
tuas figuras desenhar um espaço
onde a pura rajada desvaneça

pra só ficar estrondo mudo de anjo
a iluminar a virgindade intensa
do rosto demudado pelo espanto.

Wednesday, May 13, 2015

A Poesia chama

O telefone ficou a tocar muito tempo
e a Musa devia estar em férias, é costume por  aí...
Vejo-te entre destroços
e planos antigos para os quais olhas com cepticismo
e com aquele passivo cansaço, que rima insuportavelmente com "lasso",
e que já não se aguenta!
Acédia, meu menino? Falta de trabalho,
de atenção às coisas e de fino pensamento*,
é o que é.
Mando-te este sms para te dizer que me exasperas.
Passa bem.


a) Poesia


* Camões




 

Tuesday, May 12, 2015

A PIAF, Jorge de Sena, "Arte de música", 1968



Esta voz que sabia fazer-se canalha e rouca,
ou docemente lírica e sentimental,
ou tumultuosamente gritada para as fúrias santas do "Ça ira",
ou apenas recitar meditativa, entoada, dos sonhos perdidos,
dos amores de uma noite que deixam uma memória gloriosa,
e dos que só deixam, anos seguidos, amargura e um vazio ao lado
nas noites desesperadas da carne saudosa que se não conforma
de não te tido plenamente a carne que a traiu,
esta voz persiste graciosa e sinistra, depois da morte,
como exactamente a vida que os outros continuam vivendo
ante os olhos que se fazem garganta e palavras
para dizerem não do que sempre viram mas do que adivinham
nesta sombra que se estende luminosa por dentro
das multidões solitárias que teimam em resistir
como melodias valsando suburbanas
nas vielas do amor
e do mundo.

Quem tinha assim a morte na sua voz
e na vida. Quem como ela perdeu
toda a alegria e toda a esperança
é que pode cantar com esta ciência
do desespero de ser-se um ser humano
entre os humanos que o são tão pouco.

6 outubro 64

JORGE DE SENA

Sunday, May 10, 2015

MUSÉE DES BEAUX ARTS, W.H. Auden



(Paisagem com a Queda de Ícaro, Bruegel, Musée des Beaux Arts, Bruxelas)


About suffering they were never wrong, 
The Old Masters; how well, they understood 
Its human position; how it takes place 
While someone else is eating or opening a window or just walking dully along; 
How, when the aged are reverently, passionately waiting 
For the miraculous birth, there always must be 
Children who did not specially want it to happen, skating 
On a pond at the edge of the wood: 
They never forgot 
That even the dreadful martyrdom must run its course 
Anyhow in a corner, some untidy spot 
Where the dogs go on with their doggy life and the torturer's horse 
Scratches its innocent behind on a tree. 
In Breughel's Icarus, for instance: how everything turns away 
Quite leisurely from the disaster; the ploughman may 
Have heard the splash, the forsaken cry, 
But for him it was not an important failure; the sun shone 
As it had to on the white legs disappearing into the green 
Water; and the expensive delicate ship that must have seen 
Something amazing, a boy falling out of the sky, 
had somewhere to get to and sailed calmly on.

W. H. AUDEN

Thursday, May 7, 2015

BOSCH, O INÍCIO : O CARRO DE FENO, António Osório, "A Ignorância da Morte", 1978



Hyeronimus Bosch, O Carro de feno


Esta raiva
para que serve, contra quem
desapiedado se dirige?

A quem pode pedir contas
a alma de um bobo
ou vesgo ou anão ostentando
a disforme cabeça?

Que mal impenetrável
fez o homem ao homem, quem corrompeu
Deus em Deus, quem responderá
por tudo e por todos no juízo final?

ANTÓNIO OSÓRIO


Sunday, May 3, 2015

BACH SEGÓVIA GUITARRA, poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, in "Geografia", 1967



(Gavottes de J.S.Bach por Andrés Segóvia)


A música do ser
Povoa este deserto
Com sua guitarra
Ou com harpas de areia

Palavras silabadas
Vêm uma a uma
Na voz da guitarra

A música do ser
Interior ao silêncio
Cria seu próprio tempo
Que me dá morada

Palavras silabadas
Unidas uma a uma
Às paredes da casa

Por companheira tenho
A voz da guitarra

E no silêncio ouvinte
O canto me reúne
De muito longe venho
Pelo canto chamada

E agora de mim
Não me separa nada
Quando oiço cantar
A música do ser
Nostalgia ordenada
Num silêncio de areia
Que não foi pisada

SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN


Saturday, May 2, 2015

O PIJAMA DE MATISSE, Miguel-Manso, "Persianas", 2015



(Henri Matisse, Autoportrait)

a fotografia

libertou a pintura e a pintura (feroz
entre donatellos)
aprisionou Matisse ao coxim da idade
à doença

o cabo comprido da broxa
de pêlo redondo a riscar a parede ao fundo
a tesoura a recortar figuras
de jazzístico entusiasmo para lá da marroquina
maneira

sobre o colo

e três aves sobre a gaiola aberta
ao lume do dia

falei já de padrões de tecido
pigmentos detalhes
trovo agora sobre o fêmeo prazer
de pintar

do ofício de pôr no mundo clarões
e sombreados
retinianos provimentos obstados por atormentadas
vanguardas

a última: o dinheiro

o que hoje redijo é pobreza
e desenho
esboço hesitado a dar notícia
do que ficou por olhar à retaguarda
longe do pelotão que progride
do simulacro para o simulacro pelo
simulacro

também eu repeti em tempos: a pintura morreu

do alto de uma infeliz sobranceria
articulando a um canto da juventude
o compósito equívoco de uma
instalação

recostado nos séculos (os que foram
os que ainda)
e trabalhando de pijama (mamai desta largueza ó
sadios empregados-por-conta-de-outrem)
o velho Matisse ensina-nos pelo menos duas
coisas:

a morrer
aproximando-se